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Biografia




Quando parei pra pensar de onde eu vim, me veio à cabeça aquele livrinho que atormenta um pouco nossa pré-adolescência, aquele com uma cegonha desenhada, ela tem um ar orgulhoso e carrega no bico uma trouxa gordinha. Logo abaixo se lê aquela pergunta fatal, em letras garrafais: DE ONDE VÊM OS BEBÊS? Acho que a cegonha que me trouxe, certamente reclamava do excesso de peso, pois éramos eu, um CD player e um violão.
Nasci em Niterói no dia 28 de outubro de 1964, onde vivi até os seis anos de idade. Em 1971, eu e minha família nos mudamos para Brasília, onde passei os dezesseis anos seguintes. Comecei a cantar profissionalmente em 1981, na saudosa Sala Funarte, que na época abria concorrência para que artistas novos se apresentassem. Mandei uma fita caseira, que me rendeu um primeiro lugar e uma opção de vida definitiva. Nunca mais parei desde então.
A abertura do show era com uma música do Milton Nascimento, chamada “Fazenda” e o repertório se desfolhava por aí. O show teve uma repercussão muito boa pra mim naquela época, comecei a trabalhar em vários espaços e através da mesma Funarte, me apresentava ao lado de artistas que vinham de fora, até que, após abrir um show de Luis Melodia, no Teatro Nacional de Brasília, fui selecionada para representar Brasília no projeto Pixinguinha, no elenco de Wagner Tiso e Cida Moreyra. Viajamos por sete cidades e eu pude, pela primeira vez, cantar fora de Brasília para pessoas que eu nem sonhava em conhecer. Minha carreira “candanga” começava a querer se expandir um pouco. Brasília, além de me proporcionar um certo surrealismo no seu dia-a-dia de cidade pretensiosamente planejada, me deu oportunidade de realizar trabalhos extremamente profissionais, com músicos especialmente sensíveis, com que aprendi e apurei os ouvidos!
Aos  22 anos encontrei o caminho de volta para o Rio. Comigo vieram meu amado fusquinha branco (roubado um ano depois), uma relativa experiência e uma vontade imensa de cantar. Cursei a CAL (Casa das Artes de Laranjeiras) por um ano e meio, paralelamente montei meu primeiro show por aqui, a formação era interessante, guitarra, baixo acústico e clarinete. O repertório começava a mudar também, era algo entre Itamar Assumpção, Caetano Veloso, Beatles, Police e umas inéditas de outras pessoas. Descobri o prazer de cantar em inglês e procurar músicas brasileiras mais inusitadas, que não tivessem interpretações muito óbvias, e isso me deu uma liberdade essencial.
No final de 1989, conhecia a diretora de teatro Ticiana Studart, que estava então chegando de Nova Iorque com idéias que vinham ao encontro dos meus planos de fazer algo mais arrojado e irreverente. Os recursos eram caóticos e as idéias jorravam mais a cada dia. Muito bem, produzir é um caos, os espaços são um caos, a violência é um caos, o isolamento cultural é um caos, já tínhamos o repertório e o nome do show: “Zélia Cristina no caos”!! Conseguimos tudo, figurinista, iluminador, técnico de som, banda maquiador e público!!!
Embora ainda correndo à margem da grande mídia, sem críticos ou chamadas na TV, o resultado foi muito recompensador. Da Laura Alvim fomos para o Mistura Fina, ambos com lotações esgotadas, e tive a visita de alguém do Estúdio Eldorado, que me convidou para, enfim, gravar um disco. Pouparei os detalhes desta etapa, o mais relevante é que, com um disco que era 30% do que se poderia fazer, tive duas indicações para o prêmio Sharp, como revelação e melhor cantora pop-rock e o prazer de dividir uma faixa com Luís Melodia. Mas o show continuava sendo a parte que melhor me retratava e, com a ajuda da Eldorado e de uma empresária, cantei em São Paulo (Crownie Plaza), Porto Alegre, Florianópolis, Brasília e Teatro Ipanema. Participei de vários programas de TV, acho que os mais interessantes foram: Jô Onze e Meia, Programa Livre, que na época não passava no Rio, Vídeo-Show e Metrópolis. Foi um ano intenso e estimulante por um lado, mas por outro, o disco estava longe de se parecer comigo, não havia continuidade.
Em outubro de 1991, desavisadamente, atendi a um telefonema que mudou minha vida para sempre. Alguém me chamava para cumprir um contrato de três meses nos Emirados árabes: O QUE??? EMIRADOS áRABES??? Duas semanas depois, em meio aos bombardeios pessoais que me atingiam, eu pousava no Oriente Médio. Da janela do avião só se via areia, areia, e eu me perguntava, será que os camelos apreciam boa música? Bem, os três meses viraram cinco, cinco meses de desafio e prazer absoluto de estar fora, na maioria das vezes, cantando para pessoas que não entendiam uma palavra do que eu dizia. Eram árabes, europeus, australianos, meu Deus, então essa gente existe mesmo? Foram meses fundamentais pra mim, como uma fase de crescimento, onde tudo é aproveitado.
Fazíamos shows diariamente, minha única preocupação era deixar clara a força que nossa música tem. Durante o dia, era hora de esticar os olhos e ouvidos, uma espécie de estado de alerta, a qualquer momento um daqueles tapetes persas poderia sair voando, e eu, é claro, estaria bem em cima dele! Importei meu violão folk (finalmente!) e, além de ficar ouvindo os sons orientais, me encontrava também com influências super cultivadas, como Joni Mitchell, Joan Armatrading, Sam Cooke, Ry Cooder e Peter Gabriel. Escrevia o tempo todo e passei a mandar letras para meus parceiros, “O Meu Lugar”, por exemplo, foi escrita em Abu Dhabi.
A viagem reforçou minha personalidade em todos os sentidos, como separar a experiência artística da experiência pessoal? Voltei para casa em maio de 1992, e sabia que não era a mesma, não queria interferência nem falsos parâmetros, só pensava em retomar o trabalho, fazer um som mais acústico e, finalmente, cantar mais músicas minhas. Mais uma banda montada, fiz uma temporada no Torre de Babel que acabou se estendendo mais do que eu imaginava e me deu um presente, uma recompensa, a presença de Guto Graça Mello, que eu só conhecia de nome e de tanto as pessoas sussurrarem no meu ouvido, “Guto Graça Mello tá aí!” Que bom, Guto estava lá e me levou com ele. Começamos a gravar sem compromissos, ele me soltou no estúdio e eu me sentia carinhosamente observada.
Num belo dia de chuva, fui convidada por Almir Chediak a gravar uma faixa do Songbook de Dorival Caymmi, com Marco Pereira, no estúdio Sinth. Era um dia especial e eu estava muito feliz. Quando saí do aquário, Almir se voltou para mim e perguntou: “Você conhece Beth Araújo, da Warner?”. Eu disse: “Não, muito prazer”. Resposta: “Prazer, você já tem gravadora?”. Era uma maneira tão direta que chegava a ser desconcertante para mim. Bem, as coisas foram se encaixando de maneira surpreendente e tranquila. Batalhei pela sorte e ela mostrou a cara, acho que já era tempo.
Zélia Duncan
Texto escrito em 1994, por ocasião do lançamento do primeiro álbum pela WEA.