Sugando a rede
10/03/2011 11:44 | Autor: Zélia Duncan
Música é assim: mesmo quando você está tentando escrever sobre ela em silêncio, algo pressiona um “play” naquela playlist da vida, e os sons vão soando na cabeça de forma insistente. É físico o lance. Desde que aceitei preencher este espaço aqui, os sons não me deixam. É como se uma multidão deles quisesse me atropelar, me abduzir, me exigir atenção. Mas preciso ser forte e decidir por mim mesma. Essa imensa porteira que a música escancara na nossa frente será devidamente explorada e desfrutada, na medida do impossível!
E, como eu acordei meio pop/rock, botei na agulha Vampire Weekend, banda indie, recente e badalada, que já esteve dia desses no Circo Voador (RJ). Então deu vontade de falar deles e desse mundo de Internet, que veio ao encontro dos anseios desse tipo de banda, que conta com novos meios pra se divulgar e aparecer (e quem não?). “Contra” (2010) é o nome do álbum, segundo petardo da banda que vem marcando espaços bacanas e tem um leque de sons que surpreende. Encontramos ali uma interessante influência africana que também resvala em obscuríssimos álbuns brasileiros, como “Ronnie Von nº. 3” e “Paulo Bagunça e a Tropa Maldita” — esse último já com sonoridade africana e um clima eletrônico que devia soar bizarro e modernoso já naqueles tempos. Um som também meio “Graceland” de vez em quando, trabalho gravado nos anos oitenta por Paul Simon, (sim, aquele do Garfunkel), inclusive na semelhança com a voz desse supercompositor. É muito interessante esses caras trazerem à tona o que o Brasil não só se esqueceu como mal se lembrou que existia, mesmo na época em que esses álbuns foram lançados. Numa dessas, não fosse David Byrne, Tom Zé estaria plantando suas flores geniais em outros estranhos jardins. Em suma, é o “Contra” mais a favor de várias influências, entre tantas outras bandas indie que brotam a cada semana pelo espaço. E também americanos influenciados pela África, o que é sempre um susto bom pra todo mundo.
Falo do Vampire Weekend por ser uma banda que se destaca nesse universo de tantas bandas relevantes que estão aparecendo atualmente e por ser um bom exemplo dessa modalidade de artistas com perfil independente, que talvez, em outros tempos, demorassem mais a achar uma maneira de se mostrar de verdade.
O mercado tradicional das grandes companhias de disco ruiu e desabou sobre nossas cabeças. No Brasil, a princípio, as majors, infelizmente, resolveram declarar guerra à internet. Foi a “crônica de uma morte anunciada”. Nada poderia deter o futuro que se fazia presente e definitivo. Pois, se hoje em dia, através da rede, até as ditaduras árabes estão em risco! Agora todos estão, já há algum tempo, correndo atrás de usufruir do “inimigo”. Mas, como tudo tem dois lados sempre, as bandas alternativas e seus selos independentes, especialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos, se beneficiaram dessa imensa mudança, que é uma mudança profunda também no comportamento de quem consome música. A garotada sedenta por novidade pode agora encontrar bandas de todo tipo apenas apertando uns botõezinhos. E toda uma rede de novos profissionais está aparecendo para tornar isso
cada vez mais sedutor e convidativo. E,
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Zaz traz
15/03/2011 10:59 | Autor: Zélia Duncan
Zaz parece mais uma onomatopeia de algo ultrarrápido, que voa como o vento, ou de um objeto que alguém passou a mão e levou de nós, ou até de um desinfetante, cujo anúncio é daquele tipo odioso em que o cara está na santa íntima paz de seu banheiro e entra uma turma, vestida de branco, surtadamente feliz, com uma câmera, microfone e spot de luz pra fazer com ele uma entrevista impressionante. Mas, desta vez, é o nome artístico de Isabelle, uma francesa que virou fenômeno e que, graças (olha ela aí!) à rede, acabo de assistir e engrossar a fileira dos mais de dois milhões de pessoas que já fizeram o mesmo.
Sotaque jazzy, que aliás os franceses adoram, suingue no cantar, uma voz rouca, firme, muito envolvente. Cantou em cabarés e pelas ruas até receber o convite de uma gravadora… hum, conhecemos essa história de algum lugar!
Zaz virou disco de ouro rapidamente. Dizem que o público adora e a crítica critica, mas, cá pra nós, você preferiria o quê? Pois é, eu também!
Deixo aqui o endereço pra que vocês constatem e se divirtam com o suingue de Zaz “Piaf”. A canção se chama “Je Veux”, que também dá nome ao álbum. Parece às vezes que ela traz na mão um instrumentinho de criança, tipo kazoo, de tão metálico o timbre de sua voz , quando faz soar um scatzinho cool! E que delícia essas filmagens com cara de caseiras, que fazem a gente se sentir parte desses olhos da rua.
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Reza a lenda, amém
22/03/2011 18:58 | Autor: Zélia Duncan
Gilberto Gil tem uma linda composição chamada “Oriente” no antológico álbum Expresso 2222(1972, ano que Gil voltava do exílio em Londres). Dona de um jogo de palavras interessantíssimo, a canção trata de uma questão super recorrente para os jovens da época, candidatos a intelectuais-pensadores, apaixonados pela esquerda e por uma revolução interna e externa. Na letra, um Gil desafiador aparece, cutuca, pergunta , provoca com a letra“Se oriente, rapaz, pela constatação de que a aranha vive do que tece.” É uma maneira de exigir uma posição, mostrar a necessidade de assinar o nome em algo que pudesse ser relevante, diferente ou pelo menos corajoso. Principalmente em tempos de ditadura militar e corações endurecidos.
Na gravação, o sofisticado violão de Gil chega sombrio como a canção e insinua uma melodia oriental. A voz grudada nos ecos do instrumento faz uma introdução que já intriga logo de cara, mas também convida. Gil, aliás, impressiona por ser um artista que soma as qualidades de um virtuoso no seu instrumento com a criatividade de compositor. Fez (e faz) escola tanto com suas harmonias e belos caminhos melódicos quanto com sua maneira de tocar e cantar. Sem falar na modernidade e poesia de suas letras.
No ano seguinte, Elis Regina gravou “Oriente” com um arranjo repleto de instrumentos. Era algo arrojado pra época e ainda hoje soa assim. O arranjo acentua ritmicamente a melodia e soa bem diferente. Vai ficando grandioso, épico, mesmo porque é preciso abrigar a voz indomável e emocionada da intérprete singular que ela sempre foi. O andamento vai crescendo e termina com um jeito meio sinfônico e igualmente provocador, como pedem o tema e o momento. Elis opta por não repetir a letra, canta uma vez só. É muito significativa, historicamente falando, a escolha dessa canção como abre-alas do seu LP "Elis", de 1973.
Porém, numa audição um pouco mais cuidadosa, percebemos que Elis se distrai numa palavra que altera o sentido e a gravidade original. Ela tropeça: ”Pela constatação de que a aranhaDUVIDO que tece”. Eu fico aqui pensando...
Hoje quase todos os compositores mandam suas músicas em formato MP3, com as letras devidamente digitadas. Como será que Elis recebeu “Oriente”? Em que som ela teria ouvido para se confundir na hora de registrar? O K7 falhou? O LP estava arranhado? Ou a pessoa encarregada de tirar a letra negligenciou o serviço? “Dizem” que Gil não gostou muito da troca (o que é compreensível) e eles teriam ficado um tanto abalados um como outro.
Mas a natureza encontra sua maneira de ajeitar as coisas quando os propósitos são verdadeiros, creio eu. Então, já em tempos de paz e, certamente, imensa admiração mútua, Elis entra em estúdio em 1974 para gravar um álbum impecável contendo dois petardos do baiano Gil. “Amor até O Fim”, samba/choro sincopado cuja letra mostra que Gil emanava leveza pra sua cantora, “amor não tem que se acabar, até o fim da minha vida eu vou te amar”.
Não à toa, Elis encerra o álbum com a delicada bula ,“O Compositor Me Disse”, que tem um jeito de reconciliação com a criação e com a anatomia do canto. Me emociono só de pensar em Elis e sua incomensurável voz dizendo cuidadosamente o que foi feito pra ela .“O compositor me disse que eu cantasse ligada no vento, sem ligar pras coisas que ele quis dizer”. Gil traz a alforria nas mãos, a liberdade para a voz, agarrada no vento. E Elis voou.
Obs - E um beijo pro meu irmão mais velho, que ouvia Gil cantando isso sem parar na vitrola, se formou em Sociologia e foi dar aulas na Dinamarca.
Como disse, pode não ser verdade nada disso. Mas é lindo.
Oriente
Gilberto Gil Se oriente, rapaz
Pela constelação do Cruzeiro do Sul
Se oriente, rapaz
Pela constatação de que a aranha vive do que tece
Vê se não se esquece
Pela simples razão de que tudo merece consideração
Considere, rapaz a possibilidade de ir pro Japão
Num cargueiro do Lloyd lavando o porão
Pela curiosidade de ver onde o sol se esconde, vê se compreende
Pela simples razão de que tudo depende de determinação
Determine, rapaz onde vai ser seu curso de pós-graduação
Se oriente, rapaz pela rotação da Terra em torno do Sol
Sorridente, rapaz pela continuidade do sonho de Adão
O Compositor Me Disse
Composição: Gilberto Gil
Intérprete: Elis Regina
Compositor me disse que eu cantasse distraidamente essa canção
Que eu cantasse como se o vento soprasse pela boca vindo do pulmão
E que eu ficasse ao lado pra escutar o vento jogando as palavras pelo ar
O compositor me disse que eu cantasse ligada no vento Sem ligar pras coisas que ele quis dizer
Que eu não pensasse em mim nem em você que eu cantasse distraidamente
Como bate o coração
E que eu parasse aqui, assim…
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Ser ou não ser: eis a questão
29/03/2011 15:43 | Autor: Zélia Duncan
Interessantes certos movimentos, especialmente os incontroláveis. O Brasil se tornou mesmo um país de vozes predominantemente femininas. A imagem da mulher que solta a voz é muito forte e muita gente vive para descobri-las, seja por interesse comercial (que palavra estranha), ou apenas pelo glamour ou pela fissura de saber todos os detalhes da carreira de uma possível diva, ou de uma já consagrada rainha.
O fato é que hordas de cantoras aparecem todo mês por aí. Umas já chegam bem legitimadas, mais situadas e interessantes, outras nem tanto; até aí, normal. Mas é que, de novo, uma ironia me chama atenção. A imagem de Marisa Monte é muito forte e chegou, merecidamente, marcando presença completamente definitiva na MPB. Desde então as fileiras de candidatas a Marisa são impressionantes. São muitas meninas bonitas e femininas e afinadinhas, que anseiam pelo posto e muitas conseguem mesmo destaque e espaços. Porém, para desapontamento de muitos, as duas cantoras que estão merecendo as luzes, fogem, e muito, a essa regra.
Maria Gadú é uma delas. É a única fã confessa de Marisa Monte que parece realmente seguir seus passos, musicalmente falando. E tem muita personalidade, carisma e propriedade ao fazê-lo, o que lhe confere então singularidades que me parecem fundamentais para que uma carreira seja bonita. Gadú teve imensa força da mídia quando apareceu, o que também lembra seu ídolo, e igualmente tem fôlego próprio para prosseguir. Superinfluenciada pelos anos 90, tem a seu favor, além do talento, o tempo. E acho que vai ser melhor ainda quando ele passar.
Tulipa Ruiz é a outra cantora de quem quero falar aqui. A novidade que veio dar à praia é de Sampa, meu! Um pouco mais velha que Gadú, Tulipa não se parece com ninguém. Já se parece com ela mesma, com alguém de forma única e certeira. Sua voz aguda escorre afiada e afinada pela garganta e se derrete nos nossos ouvidos como um bálsamo, um presente do céu. Sua música traz elementos inusitados, arranjos improváveis e temas cotidianos tratados de maneira diferente. Assim como Gadú, ela compõe e muitíssimo bem. Mas vamos ver de onde ela veio? Filha de Luiz Chagas, guitarrista da lendária e sensacional banda Isca de Polícia, que acompanhou o genial Itamar Assumpção em seus álbuns mais emblemáticos. Além do pai, também está cercada de seu irmão, Gustavo Ruiz, músico inventivo e seguro, parceiro e produtor de seu trabalho. O improvável, o surpreendente, o “esquisito” são seu habitat mais que natural. Tulipa se mexe de um jeito engraçado, cativante e, quando sorri, ganha o mundo! Tulipa e Gadú têm borogodó.
Então me delicio com o fato de todo mundo estar olhando pra um lado e a novidade vir de outro. Maria Gadú e Tulipa Ruiz não são padrão, não seguiram o roteiro das boas moças. Elas são do balacobaco, elas inquietam os que gostariam de ver o sucesso enquadrado numa moldura previsível. Os estilos musicais são muito diversos, mas a irreverência de suas imagens as une e é muito bem-vinda!
Mais questões musicais
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Black is beautiful
06/04/2011 11:12 | Autor: Zélia Duncan
Na primeira vez em que eu ouvi Joss Stone, até por uma pré-disposição que assumo aqui, eu poderia jurar de pés juntos que a dona da voz era uma super negra decidida e forte que tinha aparecido na Inglaterra. Na minha cabeça, aquela profundidade de timbre e sentimento para ter soul e ser blue só seria possível tendo aquelas notas literalmente na pele. Para piorar minha avaliação precipitada, ela tinha então tenros 16 aninhos. Mas tenho certeza de que não fui a única: a própria capa do álbum de estréia, The Soul Sessions, trazia uma cantora entre sombras, atrás do microfone, onde ficava escuro demais pra sabermos que ela era realmente clara. Uma doce armadilha de quem sabia que a dúvida estaria no ar.
Joss, apoiada num elenco de experientes músicos e backing vocals, tendo Aretha Franklin e o soul americano como sua grande influência, gravou um disco completamente black, com muita propriedade. Fez jus ao time que escolheu para fazer essa viagem. Sua voz e personalidade ganharam o mundo, venderam mais de 500 mil cópias só nos Estados Unidos e The Soul Sessions se tornou um dos álbuns mais vendidos de 2004.
Em 2006, outra explosão – dessa vez atômica. Amy Winehouse invadiu as rádios e os tabloides definitivamente, com o fascinante álbum Back to Black, seu segundo e definitivo trabalho. Sempre apoiada, alimentada e garantida pela música negra, novamente, e não é à toa que é comparada a Billie Holiday, Sarah Vaughan, entre outros ícones do blues e do jazz mundial.
Com uma história de vida dramática – e até nisso semelhante às divas de antigamente, como Billie e Dinah – Amy é também uma compositora talentosa e confessional, o que agrada ainda mais seus admiradores mais sádicos, que constatam nas notícias o que suas letras já anunciavam.
Em meio a um dilúvio impressionante, naveguei junto com uma pequena multidão até o distante HSBC (será que o nome ainda permanece?), e me deparei com uma Amy um pouco fria para o meu gosto. Ouvindo as gravações, dá pra sentir o envolvimento e a urgência das interpretações. Aquela voz invade os lugares com um timbre metálico, petulante. Ao vivo, esse som estava lá, e soou muitas vezes com o poder que lhe é peculiar – a dona da voz, porém, parecia um tanto entediada, o que não combinava com a força de sua música. Mas isso em nada invalida o impacto de ouvir Amy Winehouse e sua enorme relevância como artista no som da minha casa ou no carro.
E para fechar o trio de cantoras jovens, inglesas, contemporâneas e influenciadas pela música negra, em 2008, Adele começa a despontar. Seu álbum se chama 19, que era exatamente sua idade naquele momento. Comparada à Amy, Adele é mais que isso e suas influências são diversas e mais miscigenadas. Vai de Suzanne Vega a Jill Scott, compõe com personalidade e gravou a balada “Make You Feel My Love”, do branquelo genial Bob Dylan. Porém, sua inflexão muitas vezes ao cantar, lembra mesmo a maneira como Amy estica suas notas e se derrama suingadamente na próxima frase. Isso é facilmente detectável nas deliciosas “Crazy For You”, “Cold Shoulder” e “Right as Rain”.
É interessante observar essas três cantoras com trajetórias semelhantes, se pensarmos na precocidade e força de suas vozes e posturas. Amy é muito mais poderosa em quase todos os sentidos, inclusive no fato de ter sua vida exposta quando solar e exposta quando sombria e autodestrutiva principalmente. Todas já fizeram outros trabalhos. Joss partiu para o seu lado mais pop e gravou até com Ricky Martin outro dia. O show dela no Rio de Janeiro foi bonito e sua voz continua a mesma. Adele lançou o segundo álbum, 21, mostrando que o tempo passa até pra ela. E Amy, bem, Amy continua sendo aguardadíssima nos próximos capítulos, de preferência saudável. E que isso não afete suas qualidades de cantora!
E aqui com meus botões, não paro de pensar no que seria da música e dessas novas e ótimas cantoras de olhos azuis sem Billie, Sara, Dinah, Ella, Aretha e posteriormente, Stevie Wonder. Sim, ele mesmo. Stevie que ensinou ao mundo de todas as cores, como escorregar uma vogal dentro da garganta! ***************************************
Pisando no solo
13/04/2011 15:30 | Autor: Zélia Duncan
Nunca fui uma entusiasta de Los Hermanos – simplesmente porque nunca parei mesmo pra ouvir – mas achava sempre admirável aquela legião enorme de fãs tão dedicados, inclusive a se mimetizar com a banda. Meu interesse começou ao contrário, a partir primeiro do Little Joy, banda internacional que Rodrigo Amarante formou quando os hermanos deram um tempo.
Fui ao show do Circo Voador e me diverti com os músicos-personagens. Um deles, Noan, fiel escudeiro de Devendra Banhart (artista alternativo americano, figuraça, badalado, que subiu no palco com os Mutantes naquela ocasião do Barbican em Londres) foi quem convidou Rodrigo para uma gravação em Los Angeles certa feita. É uma grata surpresa o som deles. A voz supercharmosa de Rodrigo, vez em quando revezada com a voz preguiçosa, mas ainda assim divertida de Binki Shapiro, dão super conta das ótimas canções. “Take advantage of the season, to take off your over coat”. Afinal, ficou um clima brasuca-retrô-californiano, com direito a eventuais letras em Português e umas harmonias familiares aos nossos ouvidos, como em “Evaporar”.
O show teve um clima Los Hermanos total, plateia hipnotizada, cantando cada notinha junto com a banda – que se limitou a cantar estritamente o repertório do álbum. Se não me engano, o show talvez nem tenha durado 60 minutos, mas saíram consagrados da Lapa. E querem saber? Foi mesmo uma delícia de show e a vibe era linda.
Depois veio o solo de Marcelo Camelo, Sou. Comprei também. (Ainda sofro desse automatismo, adquirir discos!)
Definitivamente, Camelo “É”. O álbum tem um monte de letras e sons interessantes, parecia que ele estava precisando dizer milhares de coisas ao mesmo tempo. Mas os artistas têm direito absoluto de seguirem suas necessidades íntimas, muito mais consistentes e genuínas do que qualquer outra necessidade que possa ser mercadológica, por exemplo – o que dificilmente seria o caso.
Toque Dela não é nome de música, é o nome do segundo álbum. Um nome meio misterioso pra mim, mas definitivamente, seja qual for o toque que ela (não importa quem) deu, foi muito bem dado.
Tudo soa maduro, consciente e muito feliz nas escolhas sonoras. Até a maneira como o ouvido vai se adaptando às inflexões do autor-cantor, à percepção da mixagem, ao jeito meiovintage do resultado, tudo isso reforça o conceito como um todo, desafia e convida a ouvir a próxima.
Houve um tempo em que os compositores mandavam as canções para os intérpretes, e o maior desafio dos autores era emplacar com um grande intérprete, e de um intérprete, ter a sorte de gravar a melhor do melhor autor. Claro que esses conceitos de melhor e mais importante variam de acordo com o rumo que cada um deseja para sua carreira. Mas então os autores decidiram não mais esperar e fazer justiça com a própria garganta. E o que, por um lado, deixou de ter um certo brilho, ganhou muitas vezes em charme e conceito – pois as canções, não raro, quando gravadas por seus criadores, chegam até nós com a cara que eles queriam que elas realmente tivessem.
Falo isso porque Camelo, como cantor, descobriu um jeito interessante pra se expressar dentro de seu universo. O lado autoral é muito forte e acaba se complementando na voz que, embora pequena, soa muito emocionada, integrada à sonoridade das palavras e dos instrumentos. E eu, que sou radicalmente contra malabarismos vocais, que se jogam no vazio, dou imenso valor a quem prefere as palavras à própria voz. Aos que, na falta (ou não) de extensões impressionantes, optam por dizer a melodia. Cantar pra mim é isso. Quem vai ter coragem de dizer que Chico Buarque não canta, se algumas de suas canções só ficam bem naquela voz? E Tom Jobim, com sua rouquidão afinada cheia de notas surpreendentes? Cabe a nós e aos nossos ouvidos conseguirmos discernir essa característica de quem canta mal mesmo – o que, convenhamos, também existe! Assim como o gosto de cada um.
Mas voltemos ao Toque Dela, de Marcelo Camelo. Tem ainda o fato de ser brasileiro, o que permeia também as canções. Sambas insinuados, ritmos e harmonias que nos oferecem uma familiaridade em meio a tantos outros caminhos que podem soar estranhos. Pausas lindas nos arranjos, compassos compostos, instrumentos improváveis e algumas letras que são achados de pura poesia e simplicidade. Palavras que, quando juntas, sofisticam qualquer ambiente.
Então, entre metalofones e suas famílias, Camelo toca ukelele, clarone, belos caminhos de violão, guitarras. Cercado de músicos interessantes, um som de flugel passeia por algumas faixas e aperta o coração. E vai assim pensando a vida com sua música, que transborda personalidade e consistência. “Meu amor é teuMas dou-te mais uma vez” Obs.: Um beijo pro parceiro Marcelo Jeneci, que sempre bebeu nas águas de Camelo e divide com ele agora seu acordeon e piano em “Meu Amor É Teu”.
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Olha o micróbio do samba aí, gente!
20/04/2011 - Autor: Zélia Duncan
Lupicínio Rodrigues não era sambista por excelência, mas tudo que compunha tinha excelência, os sambas inclusive. No mínimo “Nervos de Aço” e “Se Acaso Você Chegasse” não me deixam mentir, usando um exemplo mais óbvio. Não à toa, Adriana Calcanhotto cita no encarte de seu novo álbum algumas frases desse mestre, em que ele afirma que o “micróbio do samba” se apropria dele à medida que o tempo passa. Lupicínio era do Sul, Adriana também é. O samba não nasceu naquela região, mas seu micróbio atravessa qualquer fronteira e, quando encontra um ambiente favorável, se instala de maneira indelével e seus portadores seguem orgulhosos pela vida.
Adriana é uma adorável caixinha de surpresas. Seu novo O Micróbio do Samba dá aquela impressão de que o trabalho silencioso da artista sempre acha o momento de falar mais alto do que os alto-falantes que querem gritar todo dia nos nossos ouvidos as novidades velhas do momento. Aqui, de novo, o menos é mais. Entre um prato e uma caixinha de fósforo, o samba põe a cabeça de fora, às vezes com cara de marchinha, com melodias pouco ortodoxas e palavras que ainda não foram infectadas pelo tal micróbio, como “hiperquântico”, mas é exatamente aí que reside a marca e a origem de Adriana Calcanhotto. Despudoradamente ela nos devolve aquilo de que anda se alimentando ao longo desses anos, transformado em si mesma.
“Beijo Sem” foi antes gravada por Teresa Cristina e Marisa Monte. É um samba difícil de resistir, daqueles que nascem crescidos e dá vontade de sair cantando junto. Os temas são muito acertados, muito ‘sambísticos’, mesmo que não se traduzam em formas tradicionais do gênero, como em “Pode se remoer”, que diz: "Pode se remoer, se penitenciar, eu encontrei alguém que só pensa em beijar.
Às vezes uma guitarra distorcida num canto do arranjo, um clima maracatu somado ao violão de samba, uma lalaiá de Domenico, letras se referindo ao blues brasileiro, "agora tá na minha hora, eu vou passar uns tempos em Mangueira. Não chora, neguinho não chora, o meu coração é verde e rosa".
E lá vai Adriana Calcanhotto, puxando seu bloco, sua evolução, sua escola de samba, que tem verde, rosa e um monte de outras cores e riscos e mais sua própria maneira de sambar, que é dez, nota dez.
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Música para se ter
27/04/2011 13:20 | Autor: Zélia Duncan
Eu sou de uma geração que cresceu comprando música e ansiando pelos próximos lançamentos de seus artistas favoritos. Encartes sempre fizeram parte das minhas melhores fantasias e viagens, assim como as letras, fichas técnicas, músicos, arranjadores, autores, detalhes que pudessem ser pistas que me levassem pra dentro do universo de quem inventou aquilo tudo. Uma palavra que justificasse a imagem escolhida para a contracapa, ou uma nota de rodapé que justificasse a escolha de uma cor ou de um formato de letra.
Passava horas olhando o encarte de Clube De Esquina 2, de Milton Nascimento. Era um envelope duro. De um lado, as maravilhosas letras e tudo mais; do outro, apenas fotos, milhares, uma grudada na outra, sem legenda. Ali estava impresso o delírio que parecia ter sido aquela gravação. Como não havia internet, era na raça que eu tentava decifrar quem era quem. O clima de estúdio me fascinava num grau absurdo e eu sonhava, sonhava em poder um dia entrar nesse ambiente e viver, com toda minha vontade, o que eu desejava ser na vida. Gravar era um dos objetivos máximos para uma artista como eu. Cantar por aí, aprender, descobrir como chegar ao primeiro disco, o mistério delirante da vida que começava.
Bem, as coisas mudaram muito, inclusive e principalmente nesse sentimento do primeiro trabalho. Ficou tão fácil e banal gravar, que eu saio pra cantar e volto com a mala mais pesada, de tantos CDs que vão me entregando, como se entregassem panfletos no meio da rua. Claro que, por um lado, é bom que as pessoas tenham acesso aos seus sonhos e possam realizá-los sem muito sofrimento. Porém, não é só a qualidade que sofre, mas também a disposição para ouvir. Atualmente, parece mais possível e interessante gravar do que cantar bem, por exemplo. Mas nem era disso que eu ia falar hoje, depois voltamos a esse assunto com mais vagar, pois o barato é complexo e sinistro! E passa pelo sinal dos tempos em que ficar famoso virou uma profissão. Voltemos ao ‘objeto’ música!
É que há uns dias eu comprei o álbum novo de kd lang, de uma forma tão fácil que me fez lembrar esse velho e obsoleto hábito de adquirir música. Fiz isso através do iTunes, apertando uns dois ou três botõezinhos do meu computador e tudo apareceu na minha tela,puf! Por pouco mais de treze dólares. Com encarte virtual e tudo. Não vou mentir, já confessei minha antiguidade, prefiro MIL vezes o CD na mão, o cheiro do papel, a degustação tátil, mas fiquei aliviada de ainda poder consumir música, mesmo assim. Tenho comprado música dessa maneira já faz um tempo, pelo menos os álbuns internacionais, pois já não existem no Rio lojas que tenham catálogos bacanas. No fim do ano passado, perdemos um espaço que era primordial, chamado Modern Sound, foi um golpe fatal.
Mas eu consigo comprar assim porque uso o cartão americano de um amigo que mora no Texas, pois cartões brasileiros não são aceitos, o que é triste pra quem gosta, precisa e adoraria poder comprar. Por motivos editoriais e, segundo me disseram, inadimplência, o iTunes não abriu para o Brasil, o que reforça também tudo o que está acontecendo com o consumidor de música e sua maneira de se comportar na hora de adquiri-la, ou não. No iTunes você pode comprar por canção, que custa entre 0,99 e 1,29 dólares. Você está, por exemplo, na rua, escuta uma música, identifica, vai ao iTunes, compra por noventa e nove centavos e aquilo vai direto pra sua ‘discoteca’ virtual. É fácil, prático, útil e bom pra todo mundo. Existem alguns sites de música virtual no Brasil. Eles têm que ser muito mais divulgados e precisam também facilitar cada vez mais a forma de o consumidor comprar e se divertir fazendo isso, o que me parece primordial. Nunca vai ser como o prazer de, com as mãos, fuçar as prateleiras, puxar algo surpreendente, levar pra casa, abrir, degustar como fazíamos. Mas que novas alegrias venham, de acordo com o que for possível e conveniente pra eses tempos.
Gosto não se discute, embora a tentação seja grande. Já não existe a possibilidade de passear numa loja de discos, a menos que se queira comprar os lançamentos, ainda assim muito específicos. Por isso, é fundamental que haja cada vez mais no Brasil uma forma convidativa de se realizar a façanha de comprar música on-line, ao menos para quem acha que comprar música é importante não só pra si mesmo, mas também pra quem vive disso.
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Nossa honey baby ou Baby, Baby, há quanto tempo...
04/05/2011 20:01 | Autor: Zélia Duncan
Outro dia alguém me mandou logo cedo um link do Youtube. Aliás, esse mundo maravilhoso do Youtube me fascina. Pelo menos musicalmente falando, que é o que mais me interessa. Então, ainda antes do café, me peguei com os olhos mareados, assistindo e, principalmente, tendo o super prazer de ouvir Baby Consuelo, em 1978, cantando "Tudo Blue", de Pepeu, que aparece lindo, comandando a banda e Fausto Nilo, belísissimo poeta-letrista cearense, parceiro de Moraes Moreira e Geraldo Azevedo, entre muitos outros.
Oh, Baby, como Baby está expressiva, natural, cantando lindo. É simples, abre a boca e canta. Não existe esforço pra nada, está ali a cantora e seu ofício. Super afinada e musical. Baby é muito versátil com sua voz, com seu instrumento. Seus dons naturais relacionados com a música são muito fortes e inerentes a tudo. Carisma e musicalidade não se adquire nem com o tempo e isso ela sempre teve de sobra. Dá pra sentir sua criatividade fluindo enquanto canta. Uma relação íntima com a harmonia que a faz inclusive improvisar com facilidade.
Como nada é realmente por acaso, Baby foi a musa e integrante poderosa do arrebatador tesouro nacional, chamado Novos Baianos. Olho d’água de tantas fontes da Música Brasileira, nos deram, entre outros, o álbum Acabou Chorare, sempre listado entre os dez mais importantes de nossa história e, pela revista americana Rolling Stone, “o maior de todos os tempos”.
Mais tarde, já em carreira solo, “Menino do Rio”, de Caetano Veloso, foi abertura de novela (Água Viva/Rede Globo). A interpretação de Baby foi inesquecível e deixou sua marca pra sempre nessa melodia. Você sente a brisa da praia carioca enquanto ela canta suave, quase rouquinha, fotografando uma época mais uma vez. A mesma coisa que já tinha feito em outros tempos, deslizando seu timbre límpido em “Farol da Barra”, (Galvão/Caetano Veloso). Baby, que é do Brasil, nos entrega o cheiro do mar da Bahia: “ como a luz bate nas águas...”.
Baby é uma mulher de crenças. Sempre expôs suas aventuras espirituais e arrebanhou galeras com seu carisma, sua loucura colorida e seu entusiasmo com as descobertas. Ela agora é pastora evangélica (popstora) e continua com os cabelos lindos, roxos, roupa preta e botas tipo plataforma, guerreira do apocalipse, como ela mesma brinca. Eu não sou religiosa, mas acho bonita a entrega de Baby, porque na verdade admiro demais seu talento e seu legado. Faz um tempo que não a vejo pessoalmente, mas convivemos um pouquinho numa época e uma das deliciosas surpresas da convivência, foi o fino humor. Dávamos risadas sonoras contando casos ou observando aquelas “bobagens importantes’, que os amigos têm em comum.
Sem querer ser bairrista e obviamente já sendo, somos conterrâneas, ela saiu de Niterói, pra ser do Brasil todo e sempre vai ser assim, alguém que chega pra ganhar o mundo…e ganha!
“Como é que Deus vai se mostrar pra gente, se a gente não der uma bombada?” (Baby do Brasil)Baby é adorável até quando um tanto surreal nas suas declarações, especialmente pra quem não vive num mundo vizinho ao dela. Eu me sinto vizinha na música e fico muito feliz e arrebatada por ter esse endereço próximo, esse ponto de contato. Amém? Sim, amém pro som que sai das cordas vocais abençoadas, para as letras, as performances, as risadas da minha , da sua, da nossa honey Baby do Brasil.
A mulher que canta
11/05/2011 14:51 | Autor: Zélia Duncan
A música sempre me pareceu ser a arte mais imediata de todas, a que mais tem a capacidade de nos assaltar nas mais surpreendentes ocasiões. Claro que as artes plásticas também têm essa capacidade de, de repente, nos transportar pra outro mundo, só por uma combinação de cores ou da falta delas. Mas a música é assim, mais despudorada e invasiva. Música tem cheiro, música é teletransporte. Quando eu era bem adolescente, me sentia mulher feita ouvindo certos sons que tinham profundidade. Hoje, mulher feita, posso voltar aos dias mais fresquinhos da juventude, por causa de um refrão ou do timbre de uma voz.
Outro dia fui ao cinema. Taí outra arte que me desbunda, me arrebata, me leva pra onde quiser. E faz o que quer da música. Quando os filmes eram mudos, havia o carinha tocando piano ao vivo nas sessões. O cinema não pode – nem deve – abrir mão da música. No cinema, música é imagem. O filme nada tinha de especialmente musical, pelo contrário, ali a música auxiliava nos climas, mas não tinha um papel determinante na história toda. Porém, no meio de um roteiro duro, em que uma mulher jovem, que morava numa aldeia do Líbano nos anos 70, transgride e vê seu namorado ser assassinado por seus irmãos, ao mesmo tempo em que se descobre grávida, um detalhe me tocou especialmente. Essa mulher, por motivos religiosos e políticos, comete um delito e vai parar numa terrível prisão, onde passa quinze longos anos de sua vida, sendo torturada, obviamente. Mas com uma força interior impressionante, essa mulher vira meio que uma lenda, porque numa noite, em meio aos gritos de outra cela, ela começa a cantar baixinho. Não, não tinha uma extensão impressionante, e nem virou uma pop star, pois o filme é canadense e não americano! Mas ela canta pra achar uma saída pra sua sanidade. Você não fica ouvindo a mulher cantar durante o filme, mas ela fica conhecida e de certo modo respeitada na sua dor, porque se tornou "a mulher que canta".
O canto, de certo modo, salvou sua vida e deixou um rastro para que alguns mistérios fossem desvendados. Inevitavelmente, me lembrei do filme Piaf. Há uma cena, entre tantas emocionantes, que me marcou profundamente. Quando, já na fase final, ela cai no palco, diante de uma plateia repleta, seu empresário manda as cortinas baixarem, a leva pro camarim, dizendo que terminou. Piaf entra em total desespero e implora a ele que volte atrás. Ela diz algo como: “você não entende, eu não tenho outra opção, eu tenho que voltar”. O pedido é tão dramático e verdadeiro, que eles a levam de volta ao palco, ela ainda consegue cantar de novo, mesmo que por pouco tempo. Era um pedido de socorro.
A grande Billie Holiday, dama definitiva do jazz, com sua voz de carne viva, tem uma história de vida que também parece fantasiosa de tão surpreendente. Aos 14 anos já vivia a prostituição e, mais tarde, desesperada pela falta de dinheiro, caminhando pelas ruas do Harlem, resolve entrar num estabelecimento que dizia admitir dançarinas. Billie, dançarina desastrosa, acaba por acaso fazendo também um teste para cantar e se torna a cantora mais comovente que já se ouviu, até os dias de hoje. Seu timbre carrega a dureza de sua vida, seus vícios e possíveis alegrias. Viciada em heroína, numa audição que nem precisa ser especializada, percebe-se a mudança da voz com o passar do tempo. Não menos comovente e importante, porém menos melódica, mais arranhada. Billie sobreviveu e deu algum sentido à sua vida, graças à sua voz, que estava ali, esperando por ela o tempo todo.
A voz é um instrumento misterioso. Ela mora dentro da pessoa. Não existe luthier possível, é você e ela. É uma extensão do corpo porque se expressa através dele e por causa dele. Então fica tudo ali, corpo físico e sentimento, mais a história de cada um, que vai influenciar não só o jeito de cantar, mas as escolhas.
Adoro ouvir atentamente as gravações de grandes cantoras, ligada nas suas respirações. Quando elas puxam o ar, já existe uma intenção que emociona. Claro que vai depender do tipo de gravação e de música. Recomendo Ella Fitzgerald e Joe Pass, voz e guitarra, e, para dar um exemplo mais próximo de nós, Elis e Tom. Um álbum sensacional, clássico, gravado em Los Angeles em comemoração aos dez anos de carreira de Elis Regina. Ouçam “O que tinha de ser”, de Tom e Vinicius. Se liguem na voz e chorem com Elis ao final.
A gravação de Gal Costa da canção “Minha voz, minha vida” soa aos ouvidos (aos meus!) como uma oração. É perturbador guardar dentro de si, de forma tão literal, a razão maior da sua vida. Saber que mora ali, no seu corpo, o que vai ser sua expressão nesse mundo. Naqueles dois musculozinhos chamados cordas vocais e que são muito mais que isso pra quem vive delas.
“A mulher que canta” comove no filme – que se chama Incêndios – porque, cantando, consegue superar e sobreviver às torturas que lhe foram impostas. Em nada difere de Billie, Piaf, Gal, Elis e tantas outras.
“Minha voz, minha vida, meu segredo e minha revelação
minha luz escondida, minha bússola e minha desorientação
Por ser feliz, por sofrer, por esperar, eu canto
Pra ser feliz, pra sofrer, pra esperar, eu canto…” (Caetano)
minha luz escondida, minha bússola e minha desorientação
Por ser feliz, por sofrer, por esperar, eu canto
Pra ser feliz, pra sofrer, pra esperar, eu canto…” (Caetano)
Obs.: Acabei de escrever e a voz de Cássia está insistentemente nos meus ouvidos, dizendo: “sou inquieta, áspera e desesperançada, embora amor dentro de mim eu tenha…” Eu sei, Cássia, cantar é um desatino e uma salvação!
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Vaga música
18/05/2011 12:21 | Autor: Zélia Duncan
Tudo que envolve muito dinheiro e possibilidade de lucro acaba atraindo gregos, troianos e mais um monte de inimigos disfarçados de bons vizinhos. O ECAD deveria ser um fiel escudeiro dos artistas, um lugar onde pudéssemos todos ir e ficar sabendo, por nós mesmos, o que é feito de nosso pão. Mas não é não! Pra você ter acesso real, precisa primeiro ser associado de uma sociedade arrecadadora… começa a complicar.
Meus colegas (e eu!) andamos bastante divididos, mas até onde pude perceber, de um modo geral, niguém quer que o ECAD acabe simplesmente. A função dele é fundamental para todos. Acontece que o ECAD foi criado apenas para arrecadar e distribuir, supervisionado por um órgão regulador: o CNDA (Conselho Nacional do Direito Autoral). O Collor acabou com o CNDA e não colocou nada no lugar. Bem, quando Collor acaba com alguma coisa, sempre fica aquela sensação de que algo nos foi tirado, algo que tinha uma importância para que tudo andasse mais sob controle.
O ECAD passou então a ter um poder desmedido, quase de polícia. É talvez o único monopólio que não é fiscalizado pelo Estado. Outros direitos privados são fiscalizados, como bancos, consórcios, planos de saúde, etc.
Por que só os autores ficam sem ter a quem recorrer? Por que temer uma fiscalização, que tem tudo para ajudar na transparência dessa situação? Por que temos que nos sentir impotentes, diante da nossa própria criação, que é a nossa vida? Esse é um dos pontos de divergência entre os muitos autores engajados na discussão. Um grupo considera “a mão do Estado”, como algo que não seja bem-vindo. O outro vê essa interferência do Estado como algo imprescindível, pois precisamos de apoio para que haja uma fiscalização séria e os direitos parem de escoar por caminhos que não conhecemos.
Há muitas maneiras de não receber um direito no Brasil. Por exemplo, se minha composição se chama “Enquanto Durmo” e, por um “erro” de digitação, ou de informação, (muito frequentes nesse esquema) alguém escreve ali “Enquanto Não Durmo”, até que se apure, pode ser bem demorado e complexo. Os direitos dançam e isso pode ficar assim por muito tempo.
Há alguns bons anos, eu estava na praia e passou um ambulante vendendo CDs piratas toscos, horríveis. Fiquei quieta. Porém ele me reconheceu e petulantemente veio me provocar. Me rondou, rondou e disse: "se vocês ganham, por que eu não posso ganhar?”. Talvez seja o pensamento da maioria que, sem ser criador, quer se apoderar do que fazemos. Afinal de contas, virou um grande negócio.
Quando ainda existiam lojas de disco e os preços eram, muitas vezes, abusivos, as pessoas na rua, vira e mexe, reclamavam comigo que os artistas eram gananciosos. isso dá um desânimo, ser jogado nesse saco. Nós convivemos com uma coisa chamada royalties, que nada mais é do que o percentual, em contrato, do que devemos receber pelas vendas. Esse percentual variava, mas costumava ser entre 7 e 9% para começar e, à medida em que você ia mostrando seu potencial, podia pleitear aumento na próxima assinatura. Em NADA faz diferença para nós artistas, que o disco esteja caríssimo numa loja, muito pelo contrário. A não ser que, além de artista, você fosse também o dono do estabelecimento!
Depois da pirataria, veio a Internet enfiando o pé na porta e, embora seja cruel ver as músicas baixadas indiscriminadamente, e de novo as pessoas agindo como se aquilo fosse uma dádiva dos céus, a discussão é muito relevante e faz outras portas e saídas aparecerem também.
Pensemos juntos. Pirataria, internet, mercado de shows estrangulado, fim das lojas especializadas em música e ainda temos que lutar como loucos para termos a paz de saber que nossos direitos, dentro dos órgãos criados para nos proteger, sejam garantidos. UFA! E ainda continuar criando, sendo interessantes, relevantes , afinados e sedutores.
Não falo aqui do glamour e da purpurina do meio artístico, falo de viver do que fazemos, que é um direito que deveria ser sagrado e mais do que óbvio. É difícil ter que pensar em dinheiro e essas coisas burocráticas, quando o sonho é musical, sentimental, desejo de transcendência. Talvez por isso, muita gente esteja se locupletando há tanto tempo, apostando na nossa alienação. Mas acontece que os tempos mudaram e há vários tipos de artistas e pessoas lidando com esse nosso mundo aqui.
Há muitas coisas acontecendo, inclusive CPI, envolvendo essa matéria. Há gente se organizando, encontros com a Ministra da Cultura e propostas diferentes para o funcionamento mais saudável dessa engenhoca.
“O autor existe”, mas para que continue existindo, precisamos ainda achar um jeito de compor isso tudo. Para sermos autores de uma forma diferente, mais transparente, feito canção de ninar, onde as dissonâncias vão servir pra dar mais consistência às soluções do ato final. Será?
Duas rezas
25/05/2011 13:14 | Autor: Zélia Duncan
Outro dia, de tanto ouvir falar aqui e ali, fui procurar assistir ao novo clipe de Lady Gaga, que se chama Judas!. O clima pretende ser um épico-religioso-pagão. A produção é mega em tudo. Motocicletas pra começar. Ela na garupa de um Jesus que, no lugar de um capacete, traz uma coroa de espinhos estilizada em cima de dreadlocks. Tem de tudo um tanto. Roupas de estilistas famosos, técnicas de cinema, efeitos especiais, maquiagem diferente. Ela, uma Maria Madalena meio indecisa, insinua um triângulo amoroso entre ela, Jesus e Judas. E cá pra nós, meio culpada, pois é Judas que lights her fire! Não conheço o trabalho pra falar realmente dele. Sei que Lady Gaga é um fenômeno, sei que ela procura ser diferente e desafiadora e acho que já vi isso antes. Uma loura cantando em inglês, em meio a um monte de bailarinos bonitos e figurinos incríveis. E mais de trinta milhões de acessos!
Eu nem tinha a menor intenção de falar desse clipe, que é bacana dentro da linguagem dele, mas não mudou minha vida em nada. Porém, sexta passada, recebi um adorável email de minha sobrinha mais velha, Luiza (19 anos), que dizia: ”pras minhas tias bregas!”. E ali estava um video de uma banda nova , que ela mesma está adorando e que virou uma febre na rede brasileira, chamada “A Banda Mais Bonita Da Cidade”. De cara, achei o nome ótimo e fui correndo dar uma olhada.
Nada de motos ou efeitos especiais. Alguém pediu a casa da vó emprestada, chamou a banda, mais um punhado de amigos entusiasmados e saiu cantando literalmente pela casa. Em cada cômodo uma situação diferente de instrumentos e novos rostos e vozes que se agregam à melodia inicial, cujo nome é “Oração”. Uma música curta, de amor, daquelas que sempre tem alguém que puxa novamente, quase no fim e começa tudo de novo. Vozes de não-cantores e até nisso pode ser interessante, porque tudo parece bem espontâneo e natural. Clima amador, de quem ama estar ali, a ponto de dar vontade de estar assim com eles, num daqueles cômodos, que devem ter cheiro de lavanda e café fresco.
Se fosse nos anos 70, talvez passasse mais batido, mas nos anos 2000 toca numa melancolia, numa nostalgia boa de sentir. É tudo tão hippie, naïfe, desconcertantemente corriqueiro, porém, cheio de poesia e uma alegria despudorada. Ninguém parece estar tentando parecerin, nem preocupado de estar out. Musicalmente, o pouco que ouvi, soa delicado e simplório.
O clipe lembra o clima da banda Beirut (veja abaixo) e uma outra que adoro, chamada Bon Iver (veja abaixo). Vale dizer que essas duas soam mais consistentes e maduras. “Oração” termina com a turma toda fazendo um carnaval num só cômodo, entre confetes, cachorro no colo do batera, uma margarida, piano de brinquedo e um caminhão de sorrisos. Minha sobrinha tinha razão, me emocionei sim.
Judas! termina bem mais dramático e “grandioso”, com uma onda cobrindo Lady Gaga , um ritual numa banheira, ela caída no chão, como uma cleópatra vestida de noiva e ainda um close final, onde ela parece estar chorando. Cada cena com uma producão completamente diferente…ufa!
São climas tão antagônicos, que um me fez lembrar do outro. De como em tempos de alta tecnologia, a volta ao começo se faz presente e nos toca num lugar diferente, num lugar que nos é caro e profundo. Não falo de um em detrimento do outro não, mas gosto de ambos existirem. Afinal, sou xará da minha avó e fiz muito som na casa dela.
Mas vou juntar aqui as letras, para que elas se ajudem de alguma forma, nesse mundo de sincretismos e diversidades.
Oh oh oh oh
I'm in love with Judas
Meu amor, essa é a última oração
Pra salvar seu coração
Jegue elétrico
01/06/2011 11:30 | Autor: Zélia Duncan
Em Brasília, nos anos 80, existia uma loja de LP’s, chamada “Jegue Elétrico”. Ficava num centro comercial bem esquisito, que jamais frequentávamos de noite. Mas bastava botar os pés ali dentro e tudo ficava diferente. Aquelas capas bonitas de tão feias, aquelas caras todas, de gente que botava a mão na massa e parecia, aos meus olhos de adolescente, ter encontrado algo que eu queria e deveria saber o que era. Ali, a produção de independentes encontrava uma maneira de chegar até nós.
Em tempos de não internet, era dureza conseguir saber o que acontecia e talvez por isso mesmo, quando a novidade se materializava, a comoção era real. O que vinha de São Paulo sempre me instigou mais do que tudo. Grupo Rumo, Premeditando o Breque, Língua de Trapo, Eliete Negreiros, que cantava um arranjo louco de” Pipoca Moderna”. Cida Moreira, cantora fascinante , teatral e sempre surpreendente. Tetê Espíndola e seu álbum clássico, “Pássaros na Garganta”. O arrasador “Clara Crocodilo”, de Arrigo Barnabé, com seus metais e vocais malvados, falando de uma atmosfera que era maravilhosamente estranha a tudo que era visto por mim naquele momento.
Dentro do grupo Rumo, dois nomes especialmente arrabatadores: Ná Ozetti, cantora/compositora, também única no seu jeito de emitir as notas e se colocar nas canções, e o mestre Luiz Tatit. Compositor e inventor de uma maneira de estar dentro da canção, que até hoje precisamos parar, destrinchar e degustar cuidadosamente.
E, finalmente, aquele que se tornou um dos mais significativos representantes da vanguarda paulista, Itamar Assumpção. Porém sua obra é bem mais devastadora do que apenas um rótulo, ou uma década. Suas riquezas ritmicas e a qualidade de seu discurso são poderosas demais. Itamar tem a força do compositor popular e a possibilidade de transpor rótulos e gerações.
Por tudo isso e muito mais, vejo a invasão paulista na nossa música de agora, de forma extremamente benéfica e alegre. Marcelo Jeneci, Tulipa Ruiz, Beto Villares, Leo Cavalcanti,Dani Black, Anelis Assumpção, Céu e tantos outros, são herdeiros legítimos desse povo, que habitava meu imaginário quando pisava naquela lojinha suja em Brasília. A boa nova é que soam de forma diferente e precisamos muito das novidades consistentes.
Para não parecer que as coisas vêm do nada, saibam que Arrigo Barnabé andou fazendo um show sombrio e lindo, cantando Lupicínio Rodrigues. Cida Moreira acaba de lançar um álbum denso e profundo, “A Dama Indigna”. Ná Ozzetti lançou “Meu Quintal”, com parcerias, Luiz Tatit mostra um norte incrível, lançando “Sem Destino” e a obra de Itamar, inclusive com inéditas, foi super bem lançada numa “Caixa Preta”. Procurem ouvir. Usem a Internet Elétrica, ou a Baratos Afins, que fica na Galeria do Rock./SP. Gostar de música é correr atrás dela, saber de onde ela veio. Gracas ao Jegue Elétrico, eu criei asas, ali estava meu Pégasus possível, cada um que encontre o seu!
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A Arquiduquesa da canção e do escracho
08/06/2011 17:25 | Autor: Zélia Duncan
Algum jovem, bem jovem mesmo, que por ventura me leia neste momento, não há de saber quem foi “Araca, a Arquiduquesa do Encantado”, estou certa? Assim era chamada a cantora favorita de Noel Rosa e tantos outros, a super Aracy de Almeida. Mulher absolutamente singular em sua figura e trajetória.
Quando criança, sempre via o programa de calouros de Silvio Santos, aos domingos. Uma das figuras mais bizarras e intrigantes, ao lado de Pedro de Lara, era então nossa Aracy. Eu a via com preconceitos de criança e não entendia o porquê dela ter mais poder que os outros, sendo tão aparentemente rude e feiosa. Foi minha mãe que primeiro me disse: "ela era uma grande cantora, tem o melhor ouvido do programa, por isso o direito de reprovar os mais desafinados e ainda passar-lhes uma boa espinafração".
E Aracy cumpria bem aquele papel de estraga prazeres do programa. Fazia tanto sucesso que, segundo o livro do poeta , produtor e amigo, Hermínio Bello de Carvalho, chegou a ser a jurada mais bem paga da televisão brasileira. Com o gordo contra-cheque, Aracy abriu mão de qualquer pontinha de glamour que fosse, pois era o que se esperava dela. Era extremamente despojada de qualquer aparente vaidade e debochada como jurada. Porém, no passado, fora uma cantora fina, afinadíssima, antenada, querida pelos compositores da época, entre eles o adorável rabujento, Ary Barroso, que simplesmente a escolheu, como primeira cantora de "Aquarela Do Brasil".
O mais interessante é que Aracy era um paradoxo com duas pernas. Nascida e criada no subúrbio carioca do Encantado, era chegada aos palavrões e à vida boêmia. Noel a arrastava pelas noites, cantavam em casas noturnas e bordéis eventuais. Foi casada com um goleiro de futebol, depois viveu com um general aposentado. Junte a isso leituras sofisticadas, amizades com Di Cavalcanti, de quem tinha quadros nas paredes, poesia de Augusto dos Anjos e textos de psicanálise. Amava o natal, era exímia decoradora da festa. Gostava de cozinhar com especiarias, mesa posta com cristais e pratarias. Em casa, bermuda e camisa amarrada na cintura. E pasmem, cuecas. A diva Aracy queria o conforto do(da) samba-canção de todas as formas possíveis e imagináveis.
Transgressora por excelência, tinha expressões famosas e tiradas tão rudes, quanto sensacionais. Só andava de trem (que chamava de “avião dos covardes”). Araca era tudo ao mesmo tempo agora. Chamada de “o samba em pessoa” e “a intérprete perfeita de Noel”, isso dito inclusive por ele mesmo, viveu a fase áurea dos auditórios das rádios, que eram as grandes propagadoras das vozes mais lindas e poderosas do Brasil.
No meu imaginário, a mágica de ouvir um ídolo, mais do que idolatrar sua imagem física, me parece arrebatadora ao extremo porque liberta a imaginação. Você se emociona com o que não está imediatamente vendo. Dizem que no enterro de Chivo Alves, mais de 500.000 pessoas foram para as ruas chorar e render homenagens ao Rei da Voz. Em tempos sem televisão, é algo extraordinariamente bonito.
Então Araca, a diva transgressora, era poesia na época do rádio e escracho na fase televisiva, que foi justamente a que, infelizmente, mais ficou marcada na memória das pessoas, pois a TV tem essa propriedade de trator. Para o bem e para o mal. Não se pode julgar essa intérprete tão fina. Fico aqui me perguntando, que lugar haveria para ela, se não tivesse sido jurada, personagem do Ibope selvagem de domingo. De que viveria? Não importa mais, porém, um pouco de reconhecimento vale ouro pra memória dela e pros nossos ouvidos.
Salve Aracy de Almeida, que fez do samba e do samba-canção sua roupa íntima e um tesouro valioso pra nossa cultura. Semana que vem, eu juro, se não falar do presente, falo do futuro. E como diria Aracy: Valeu, matusquelas!
OBS-Araca Arquiduquesa do Encantado, é o nome do livro de Hermínio Bello de Carvalho, que empresta suas palavras deliciosas, pra nos falar de sua musa.
OBS-Araca Arquiduquesa do Encantado, é o nome do livro de Hermínio Bello de Carvalho, que empresta suas palavras deliciosas, pra nos falar de sua musa.
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“A alegria é a prova dos nove”
15/06/2011 17:06 | Autor: Zélia Duncan
Crédito: Foto de Walter Firmo
Existem vários tipos de músicos e formas de lidar com a música, obviamente de acordo com o talento e as escolhas de cada um. Há compositores diversos que não tocam instrumentos, porém compõem de boca, como se diz, verdadeiros clássicos. Alguns se resolvem em caixinha de fósforo, o que também é uma arte. Ciro Monteiro e Elton Medeiros não me deixam mentir. Que os cigarros desapareçam se for o caso, mas nunca essa chama em pacotinho, promessa de suingue tão brasileiro!
Há os compositores-mestres, que dominam com singularidade seus instrumentos, como por exemplo, João Bosco, Ivan Lins, Chico Buarque, Joyce, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Djavan, Milton Nascimento, Luiz Tatit. Alguns da minha geração, Chico Cesar, Lenine, Moska, Pedro Luis, Zeca Baleiro. Há os compositores-maestros, como Tom Jobim, Radamés Gnatalli, Francis Hime, Edu Lobo. Os dois últimos foram recentemente convidados da OSESP, orquestra paulista , a mais importante da América Latina, para orquestrarem peças próprias, executadas por cordas, madeiras, metais, coro e tudo mais que se espera de uma grande orquestra.Há ainda os autodidatas geniais como Itamar Assumpção ou os sábios irreverentes, como Tom Zé e Jorge Mautner.
A gente sempre esbarra, em algum momento da vida, com aquela antológica foto de Pixinguinha na cadeira de balanço. É muito bonito constatar a relação de um grande músico com seu instrumento. O saxofone é como uma extensão de suas mãos, um link de harmonia com o céu que ele contempla ali. A visão da completude.
Quando ainda morava em Brasília, fui assistir ao Hermeto Pascoal. Reza a lenda (olha ela aí!) que, antes do show, vez em quando, ele invade seu próprio palco e “rouba” as partituras dos músicos . Foi um show que me marcou pra sempre, pois além de vê-lo tocando não só os convencionais instrumentos, tocou chaleira. Isso mesmo, chaleira, aquela que esquenta água pro café. Ao final, foi saindo do palco, em fila indiana com sua banda que, seguida por toda plateia, deu a volta no teatro pelo lado de fora. Nós todos fomos seguindo aquela literal mistura de flautista de Hamelin com Papai Noel, sem questionar, apenas constatando o quanto a vida pode ser surpreendente e alegre. Procurem assistir a um video dele com sua trupe, dentro dágua, soprando uns vidros. É de outro mundo. Hermeto diz que quando você não toca o instrumento, ele te abandona…
Outro mago impressionante é o amado percussionista Naná Vasconcelos. Naná viveu durante muitos anos fora do Brasil, tocou com grandes nomes internacionais. Hoje mora em Olinda, comanda a abertura do carnaval de Recife, entre muitas outras coisas. Naná é envolvido com as nações de maracatu, coisa séria e profunda. Tem vários álbuns gravados e o dom de hipnotizar a platéia e fazê-la cantar sons da natureza. Uma coisa de louco, uma epifania coletiva. Certa feita, num ensaio, ele começou a olhar pro teto e perguntar: “hã?” Todo mundo fez silêncio e ele continuava, “hã? O que? Ah, o suingue? Calma, já tá chegando!” e caiu na gargalhada! E ainda sabe cozinhar esse Naná! Ora, ora, Deus às vezes não é justo!
Mas creio que o primeiro a quem assisti ao vivo foi Egberto Gismonti, que lançou álbuns antológicos pela lendária gravadora ECM. No show, anos 80, ele trazia a novidade de um sintetizador no palco, o tal do OBXA. Tudo parecia vir de outro planeta. Recomendo um álbum em especial, onde ele toca apenas violão, se não me engano, chamado Solo. Não, não, tem oÁgua e Vinho, ou melhor, um que se chama Palhaço, não, nada disso, fechem os olhos, escolham qualquer um, a viagem é certa.
Tive o privilégio de ver Raphael Rabello e seu sete cordas ao vivo, o que também era uma experiência à parte. O cara tinha um coração em cada mão e uma técnica absurda. E ainda uma característica muito interessante: adorava acompanhar eventualmente uma voz, coisa que não é comum entre vistuosos. Fã incondicional da diva Elizeth Cardoso, gravou com ela - quando ele já era uma grande estrela de seu instrumento -, um álbum vigoroso, apaixonado e não à toa intitulado Todo Sentimento. Ouça e se chorar, saiba que não foi o primeiro e nem será o último.
Tudo isso veio à tona em minha memória porque fui convidada para um “pequeno” sarau, onde Hamilton de Holanda e Yamandu Costa tocariam um arranjo especial de Noel Rosa, para um pequeno grupo de pessoas amigas.
Pra falar de Hamilton e sua obra, que já é vasta, precisaria de um post só pra isso. Assim como Yamandu, esse gaúcho arretado, que já tem estrada e reconhecimento de sobra por aí. Mas os dois juntos causam uma terceira sensação que ficou marcada em quem esteve presente. Eles nos “enganaram”, dizendo, “vamos ensaiar primeiro”! Digo enganaram, porque tudo ali soa encontro, tudo parece certo, até os descaminhos e atalhos. Um olhar aqui, uma franzida de testa ali, uma risada que só eles entendem e lá vem a melodia de Noel, descendo a ladeira, pra subir de novo logo ali. E são desempenhos tão elevados, que tudo parece muito fácil. Parecia que, se eles parassem, a música prosseguiria. E de repente a rainha Alcione, que já tinha cantado e calado tudo que é passarinho, desvenda: “vocês parecem duas crianças!”. Bingo! Alegria de criança! É exatamente isso. O segredo desses dois caras ali, fazendo misérias… e sorrindo, como quem solta uma pipa, ou anda num carrinho de rolimã, cujo freio existe, mas ninguém aciona. Improvisar é meio isso. O freio improvável. Tive o privilégio de gravar e viajar com Hamilton. Ele foi o único músico até hoje que olhava pra mim, no meio da canção, nós dois marejados de música, enquanto seus dedos não largavam das dez cordas de seu bandolim e sussurrava:” tá lindo!”.Não posso deixar de pensar que a alegria emocionante do músico brasileiro, que se sente bem resolvido com sua profissão, sempre o vai diferenciar do resto do mundo. Não essa alegria tipo exportação surtada, mas a alegria que foi detectada faz tempo, por Oswald de Andrade. Aquela que não desgruda da gente quando desfrutamos da nossa mistura e quando estamos sendo nós mesmos.************************************************
Salve, Candeia!
22/06/2011 18:09 | Autor: Zélia Duncan
Esses dias, Candeia bateu à minha porta, na forma de três lançamentos do selo Discobertas, coisa muito fina pra todos nós. São eles, Candeia (1970), Raiz (1971) - onde a primeira faixa está trocada com a segunda -, e Samba de Roda (1976). Wilson Moreira, Paulinho da Viola e Casquinha aparecem como parceiros, mas raramente. Em geral, compunha sozinho.
Portelense autêntico, Candeia começou precocemente, estimulado pelo pai e sempre teve o samba, a Portela e sua afrodescendência como uma religião. Poeta do samba, compôs versos bonitos, como ”no jardim da vida, esperança é flor” e na voz iluminada de Clara Nunes, emocionou o Brasil e alcançou números expressivos, dizendo que “o mar serenou quando ela pisou na areia”… Mas como a vida real sempre mostra as caras também, no começo dos anos 60, Candeia, que tinha entrado pra polícia, numa estúpida discussão de trânsito e com uma certa fama de truculento, acabou sendo baleado e impedido de andar pra sempre. Aposentado por invalidez, finalmente se dedicou integralmente à música. A retomada obviamente foi complexa e seus temas traziam caminhos diferentes depois de sua tragédia pessoal. Os sambas mais doídos e existencialistas, pressentindo a vida curta pela frente. Imediatamente, me remete ao grande Curtis Mayfield, ídolo da música negra americana (autor da famosa trilha Super Fly, que impulsionou sua carreira solo), que se viu também preso à uma cadeira de rodas, por conta da queda de uma torre de luz, quando exercia seu ofício no palco. Um nome importante, conhecido por influenciar os primórdios do funk, com o grupo The Impressions e pela consciência política. Vejam vocês, são demais os perigos dessa vida, esteja você na rua, ou no palco! O ano de 1975 foi importante na vida de Candeia: fundou a Escola de Samba Quilombo, a pretexto de levar o samba autêntico, que tanto defendia. As mudanças em relação às Escolas de Samba, especialmente dentro de sua Portela, deixaram o sambista muito desgostoso. No mesmo ano, Candeia compunha seu Testamento de Partideiro, onde dizia: "Quem rezar por mim que o faça sambando". É o que o selo Discobertas faz agora e que os anjos do samba digam amém!
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Ensaiar é preciso
30/06/2011 11:44 | Autor: Zélia Duncan
Ensaiar é preciso. Ensaiar é uma rede de segurança. Mesmo que na hora “h”, você faça tudo diferente, vai fazer justamente porque ensaiou.
Quando o ensaio é do seu trabalho, é importante saber escolher bem, quem vai te acompanhar. Isso partindo do princípio de que você é uma cantora ou cantor solo, que vai precisar de uma banda. Mas respire fundo, você vai errar muito nessa parte. Minto, você vez em quando vai acertar! O convívio com os músicos é maravilhoso e complexo. Com eles experimento momentos, influências e sentimentos únicos, que vão se espalhando pelos álbuns, palcos, programas e ensaios. Nem tudo são flores, mas espalhamos juntos várias pétalas perfumadas ao vento. O músico participa de momentos íntimos, nos vê com uma lente de aumento inevitável e, uma vez no palco, se posiciona na nossa retaguarda. Portanto, é muito bom ter nessa ocasião, pessoas que gostam de estar ali e de alguma forma apreciam o que estão fazendo ao seu lado. E, nesse sentido, os ensaios são mesmo uma benção. Só a partir deles, você se sente mais seguro para enfrentar o imponderável.
Arrebenta a corda da guitarra… hoje em dia, eles levam outro instrumento, temos um rodie profissional e tudo acontece mais rápido. Mas, antigamente, o músico se retirava do palco para trocar a corda e o show rolando. Ou então o contrabaixo fica mudo. Caos. Mistério, eles correm pra lá, correm pra cá, a platéia tentando entender e você também. Não dá pra sentar e chorar, atitudes precisam ser tomadas e se você está basicamente seguro com o que fez pra chegar ali, vai continuar fazendo e aprendendo. Até que alguém una um fio ao outro, ou aperte aquele botão banal, que alguém desapertou sem querer.
Se fizermos o que foi ensaiado , vai ser lindo, se fizermos diferente e muito melhor, também foi graças às horas que passamos praticando, criando, batendo, literalmente, na mesma tecla. Claro que há vários tipos de talentos, gente que sai tocando, improvisando e pronto. Mas se você está ensaiando para um lançamento de álbum, por exemplo, provavelmente vai querer reproduzir o que gravou e há várias maneiras de se fazer isso. Eu adoro ver o trabalho se modificar nas mãos dos músicos que eu escolhi. Gosto de vê-los envolvidos e estimulados.
Mestre Itamar Assumpção, vez por outra, mudava todos os arranjos já gravados e dava sempre vazão à usina que trabalhava incessantemente dentro de sua cabeça. Então ele tinha a seu lado músicos competentes e dispostos a enfrentar esse tipo de desafio.
Há alguns dias ensaiamos para o Prêmio de Música, a turnê. Outra modalidade de ensaio. Repertório só de Noel Rosa e uma banda fixa, escolhida por um diretor. Vai ser um evento com quatro artistas diferentes. A postura é outra, as idéias de muitas pessoas estarão ali e músicos com os quais eu tenho o prazer de cantar vez em quando, que não são a minha banda. É também muito interessante, porque você precisa se expressar cuidadosamente e tem a oportunidade de se ouvir diferente, dentro de uma outra trama de sons.
Cantei com meu amigo Lenine, que é um cara extremamente musical, que abre vozes e se diverte e se emociona junto comigo. Mais uma possibilidade de fazer música, cantando com um colega. Aí é preciso ouvir, receber o que a outra voz propõe, servir e ser servido. Ensaiando você percebe o melhor rumo a ser tomado, dependendo também da personalidade de quem divide a canção com você. Nessa ocasião, convém mais ouvir, assimilar e propor com delicadeza, sem gritar no ouvido do colega, o que pode ou assustar, ou provocar outros gritos em troca e a música vira um ringue, uma fogueira de vaidades nada musicais. Com Lenine, por exemplo, o encontro é suave, de colegas que se gostam e respeitam as trajetórias, só alegria.
Seja como for, me parece que sempre que a música for privilegiada, sempre que ela for o objetivo principal, as outras coisas relativas ao show acontecerão bem.
A música gera todo o resto e o ensaio é a maternidade, o marco zero, o início do exercício do desejo, que deve ser incontrolável, de se expressar.
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Netos de Erasmo
06/07/2011 12:06 | Autor: Zélia Duncan
Show de Erasmo Carlos é sempre uma super pedida. No Municipal do Rio, comemorando 50 anos de carreira, é algo que, se possível, não se deve mesmo perder de jeito nenhum. Então, não perdi. A platéia, com um sorriso no rosto antes do show, já era prenúncio de que todos saíram de casa convictos da importância daquela data.
Erasmo é um cara grandão, bonachão e cheiroso. Falo porque tive a honra de cantar com ele certa vez e o cara, até nisso, capricha. Erasmo é o irmão do Rei, ora essa, o “good bad boy ” da dupla. O roqueiro que adentra o palco com seu casaco de couro, sua calça jeans e diz que “rock é amor”. Ele e o Rei Roberto cantaram “É Preciso Saber Viver” e, enquanto cantam e choram, fazem todo mundo cantar e chorar com eles. Deve ser porque as canções falam tanto de nós mesmos, que é como se todo mundo ali, do palco à plateia, completasse 50 anos de carreira junto com eles. Eles são cada um de nós lutando pela própria vida. “É preciso ter cuidado, pra mais tarde não sofrer…” como é bom cantar isso com uma pequena multidão de sobreviventes e se sentir um deles!
E como dizem que o diabo é diabo porque é velho, o Tremendão, experiente que é, convocou uma banda interessante, que executou de forma refrescante e criativa as antigas canções. Escolha inteligente e sábia, fazendo soar arranjos que não tinham o desejo bobo de apenas serem forçadamente diferentes, mas sim de somar surpresas ao que já existe e, teoricamente, se basta.
Zé Lourenço, músico de várias vertentes, assinou a direção musical. Dadi, com sua jovialidade persistente, tocando uma bela guitarra melódica , Billy Brandão, com solos bem colocados, de extremo bom gosto e finalmente, o trio Filhos da Judith, grande sacada da formação. Eles são uma banda de garagem e o que se diz deles é que são “fundadores do movimento Drive’n Beat, que une de forma homogênea o passado e o futuro”…hum, definição completamentepré-pós-tuo-bossa-band, sei lá mil coisas…
Sério, os meninos são muito bons, dêem o nome que quiserem. No palco de Erasmo eles fazem de tudo e emprestam juventude no melhor sentido ao som e aos outros feras com quem dividem a ribalta. Pedro Dias (baixo e vocais) e Luiz Lopes (violão, guitarra e vocais), são irmãos, têm visual retrô e certamente são influenciadíssimos pelos anos 60 em todos os sentidos. Daí a delicia que deve ter sido pra eles estarem com Erasmo e seu legado histórico em pleno Municipal. Arrasam nos vocais, seguríssimos nos rifes. O terceiro integrante, o batera Alan Fontenelle, mal posicionado espacialmente, pois nem podíamos vê-lo, se mostra por inteiro na “cozinha” do som (que é como chamamos baixo e batera). Os meninos, num certo aspecto, são netos de Erasmo. O vovô mais orgulhoso que já se viu!
Como banda, eles soam bem vintage também. Um pouco Rockabilly, a clara devoção aos Beatles e até um sotaque Mutantes vez em quando, embora o discurso seja bem ingênuo. São músicos muito, muito bons no que fazem e cantam com competência. Não à toa, chamaram a atenção de Liminha, produtor da pesada e eterno ex-baixista da banda de Rita ,Sérgio e Arnaldo.
Intriga também o fato de serem uma banda carioca, que usa calça skinny, botas pretas, terninho cinturado, gravatinha, prontos para serem underground em Porto Alegre ou São Paulo. Nananão, eles são daqui. Agora, se frequentam ou não a praia de Ipanema, já é outra história!*****************************************
Paul, o Simon
13/07/2011 14:14 | Autor: Zélia Duncan
Paul Simon é um songwriter da pesada e merece todo nosso respeito. E, mais que isso, acaba de lancar um álbum interessante, cheio de vibração e frescor. Ah, mistério esse de se manter interessante e interessado, mesmo depois de tantos feitos. Imaginem, desde os anos 50, ele está na ativa.
Participou de grupos, teve pseudônimo e ainda decifrou desde os sons do silêncio até os sons africanos, em Graceland (1986), passando pelas águas turbulentíssimas (será que alguém resiste a esse trocadilho?) desse mercado e desse monte de colegas e apelos visuais sem fim. Cantou em dupla com o charmoso colega de classe, Garfunkel e, mesmo depois de terminada a dupla, dez anos mais tarde, realizaram aquele concerto histórico no Central Park.
Fora os discos solo como Hearts and Bones, Still Crazy After All These Years e eventuais trihas sonoras, pra desaguar agora em So Beautiful or So what. Um sotaque africano ainda belisca o ouvido lá no meio , em meio a vocais e violões tão belos e hamônicos que ,desculpem se sou tendenciosa, mas parece até coisa de violeiro brasileiro, de tão bonito.
Não à toa, um dos chefes de um certo pop, Elvis Costello, faz o texto de abertura e chama atenção: “aqui está um homem que se apodera totalmente do seu talento, olhando para a comédia e a beleza da vida, com a clareza e a ternura que só o tempo traz”. Ah, dá uma ouvida, vai! “So Beautiful or so what?” e veja o Making of abaixo.
http://revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-musicais/geral/paul-o-simon
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Se Noel Fosse Caymmi…
20/07/2011 14:33 | Autor: Zélia Duncan
Noel morreu aos 26 anos e deixou quase trezentas músicas como legado. Mas vejam bem, quase trezentas BELAS músicas. Fico aqui pensando que alguma coisa, desde muito cedo, devia transmitir a ele a urgência de sua existência, a necessidade de desaguar o seu melhor, mesmo antes de usufruir do tempo para seu aprimoramento. Então Noel Rosa deve ter realizado o fato de que não teria o aliado poderoso a seu favor para aprender. E aprendeu assim, de repente, como se cada ano fosse uma década. Como se já tivesse nascido pronto!
Falou de roupa, portanto de moda. Falou da Vila, falou do Estácio, do botequim, das coisas nossas, da boemia, dos disparates da época, detectados ainda hoje. Filosofou, falou do orvalho, das diferenças de classe, das crônicas do dia a dia e de amor. Bateu boca através de clássicos com Wilson Batista. Usufruiu e aprofundou na música brasileira as melodias de choro, convocou os ritmistas do morro, subiu o morro pra fazer parcerias, embora fosse de classe média. Valorizou ao extremo o que nos identificava e ainda não era muito falado. É nosso campeão dos cem metros rasos da MPB. Em tão pouco tempo, bateu vários recordes!
O que será que passava na cabeça do tão jovem Noel, sentindo a fragilidade do seu corpo e a força de seu talento? “Quando eu morrer, não quero choro nem vela, quero uma fita amarela, gravada com o nome dela…”. Tem aquela tristezinha no fundo de um refinado senso de humor.
Seu primeiro sucesso foi “Com Que Roupa”. Ali , Noel se prepara pra sair, se mostrar, aparecer nas ruas da vida e arrasar na passarela da música Brasileira. Sua última música, não à toa, foi “Último Desejo”. Densa, triste, linda. Ele se despede de um amor, deseja ser lembrado pelos que o amaram, desprezado pelos que ele detesta e mais uma vez nos entrega uma história inteira pra viver, enquanto a melodia soa.
Imaginem só, outro gênio, chamado Caymmi, viveu até os 94, não sei se chegou a fazer cem canções, todas clássicas e indispensáveis. A preguiça jocosa de Caymmi é conhecida e louvada sempre. Ele nos deu a Bahia. Construiu a imagem daquele lugar mágico pro resto do Brasil. No timbre a profundidade do mar, que eu até hoje temo, graças a algumas de suas músicas. Caymmi devia sentir que tinha todo tempo do mundo para construir sua obra. Noel teve que se concentrar, condensar tudo em tenros, ínfimos 26 anos…
Agora vamos imaginar Noel com a longevidade de Caymmi.
Não teria sobrado nada pra ninguém! Ele ia fazer todo cancioneiro sozinho!
http://revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-musicais/geral/se-noel-fosse-caymmi...
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The Queen is dead
28/07/2011 10:53 | Autor: Zélia Duncan
Quando morre um artista que, em vida, encheu a nossa de sentidos, é uma coisa sofrida. Bate um vazio esquisito. Não importa muito o motivo. Se tragédia pessoal, acidente, doença ou simplesmente o fim da linha. Claro que uma pessoa jovem, causa uma comoção diferente, um lamento mais comprido. Mas o fato é que um artista que parte, seja em que idade for, dá espaço pra vida real, pra crueza toda do cotidiano. É uma fonte de surpresas emocionantes e questionamentos importantes, que seca pra sempre.
Então Amy Winehouse partiu. Sucumbiu ao roteiro sinistro que de certa forma foi escrito por sua curta história, até então. Cheguei a pensar (e desejar!), que ela ficaria nesse folclore do “vai não vai”, de ser durante muito tempo alimento pros abutres dos asquerosos tablóides ingleses, sei lá, tudo menos morrer. Morrer é radical demais, silencioso demais, vazio demais, pra quem tinha uma importância daquele tamanho. Pra quem marcou presença como a voz mais desafiadora e incrível das últimas décadas. Uma bad girl legítima, que comoveu o mundo inteiro com seu estilo, seu vestido curto, apesar das pernas finas, seu amor bandido, estampado nas bancas e nas letras despudoradamente autobiográficas de suas irresistíveis canções.
Dá uma profunda tristeza imaginar o sofrimento. Quando, no show do Rio, não percebi nela nenhum tipo de prazer, ou mesmo de catarse através da música, o beco sem saída se anunciou ali, na frente da platéia.
“Nunca morrer assim, num dia assim, de um sol assim…”
Sua música fez a alegria de um monte, de milhares, mas não serviu à ela própria. Não evitou que ela despencasse pra dentro de seu abismo particular e ela caiu, quando por sua própria vida, devia voar. Porém as expectativas, as relações vampirescas de todas as naturezas e o falso poder e conforto efêmero daquelas drogas pesadas, provavelmente cortaram suas asas na hora da queda. E não houve rede possível.
Se negou tanto e nos divertiu tanto dizendo que não voltava pro “rehab”, que agora is “back to black” for good. E nos deixou aqui, com esse pepino que é a vida real, nua e crua. Sabendo que ela não vai reaparecer. O que vai aparecer agora será o seu fantasma , que a gravadora e, provavelmente, o pai, vão arrastar por aí. Vazio esquisito… e aquela sensação péssima de que a sombra tá ali fora, pronta pra engolir o primeiro que fraquejar. Mas antes que isso aconteça, eu corro pro tocador de CD e bem alto ouço a voz irremediavelmente revolucionária de Amy Winehouse e ressuscito com ela, no meio da sala http://revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-musicais/geral/the-queen-is-deada!********************************************
Itamar Assumpção - Uma ode à independência
06/09/2011 19:05 | Autor: Carlos Freitas
Daquele Instante em Diante, documentário sobre Itamar Assumpção, é a pedida para este dia em que celebramos a Indepedência do Brasil. O filme dirigido por Rogério Velloso revela um artista maior que sua fama (de maldito, para muitos). É um retrato vivo deste que foi um dos mais agudos integrantes do hall dos músicos que definiram a música brasileira atual, quanto ao posicionamento mais autoral, de compositores como produtores, donos de suas carreiras.
Sem dar muita ênfase aos aspectos polêmicos da vida pessoal de Itamar, revelando inclusive um lado mais ameno, de pai e marido cuidadoso, cultivador de orquídeas - que lhe renderam o nome da sua banda Orquídeas do Brasil -, a escolha do diretor foi por um foco mais musical, destacando a controversa posição do músico, morto em 2003, aos 53 anos, vítima de câncer, perante o mercado fonográfico.
Os 20 anos da carreira de Itamar Assumpção, de fato, retratam nuances que cercam a trajetória da música independente do Brasil. Um luta de um artista inconformado com o seu tempo. Incondicional à sua verve autoral, ele não se curvou as concessões que o meio musical impunha. E sofreu com a falta de reconhecimento de sua obra em vida. Segundo a poeta e parceira musical Alice Ruiz, Itamar não aceitava "ter nascido para ser póstumo".
Nove dos seus doze discos foram lançados por ele próprio ou por selos independentes, numa época em que isso significava uma divulgação e distribuição praticamente nulas. Um dilema para uma obra musical com potencial popular. Como disse o baixista do Isca de Polícia e fiel escudeiro Paulo Lepetit: "o sucesso bateu várias vezes na porta do Itamar, mas ele nunca atendeu".
Itamar Assumpção sonegou o sucesso em nome da liberdade de criar, mesmo que isso significasse discos gravados de forma precária. Mas para muitos - eu incluso - é aí que reside a força discos da fase de Itamar à frente da banda Isca de Polícia, como "Sampa Midnight" e "Às Próprias Custas S/A". São pedras preciosas brutas, sem lapidações.
Rogério Velloso se empenhou em desfazer a ideia de que Itamar se predispunha à vanguarda para se opor ao popular. “É como se, para chegar até as pessoas, eu precisasse evitar ser popular”, disse Itamar numa das suas declarações no filme. Numa outra, tendo ao fundo o verso “ser carioca e baiano/ por que que eu não pensei nisso antes?” da canção que dá título ao filme, Itamar questiona a renovação da música no Brasil: será que a música brasileira vai ser sempre Caetano e Gil?”.
Assim, de forma ágil e fragmentada, o diretor contrói seu documento biográfico, sobrepondo declarações e apresentações de Itamar Assumpção, fruto de um longo garimpo de dois anos em arquivos das TVs Cultura, Globo,Bandeirantes e do Itaú Cultural - que apoiou o projeto como parte da série Iconoclássicos. As imagens resgatam apresentações históricas da Isca de Polícia, inclusive no emblemático Lira Paulistana, palco da vanguarda musical da cena paulista nos ano 80.
Tive a oportunidade de assistir ao show da Isca com participação de Arrigo Barnabé - que, segundo Itamar, o ensinou sobre música atonal e música contemporânea - no Projeto Pixinguinha. Ali, entre as ações de Itamar Assumpção, do soberbo baterista Gigante Brazil, morto em 2008, do baixista Paulo Lepetit e do guitarrista Luiz Chagas, residia uma música que pulsava com intensa originalidade. À frente do seu tempo, desafiando tons, desconstruindo padrões rítmicos do samba, reggae, funk. Atropelando as restrições do mercado fonográfico com arte, mostrando "com quantos nãos se faz um sim".
Ao final de Daquele Instante em Diante, ao vê-lo cantar a capella os versos de "Dor Elegante" - "ópio, édens, analgésicos/ não me toquem nessa dor/ ela é tudo que me sobra/ sofrer vai ser a minha última obra" - totalmente emocionado, por um momento pensei em Itamar como um herói, ou mártir, além de iconoclasta, da música independente brasileira.
Trailer do filme Daquele Instante em Diante